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SOLENIDADE DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO – REI DO UNIVERSO

                                               26/11/2017

                                       Pistas homilético-franciscanas

 

Leituras: Ez 34,11-12.15-17; Sl 22(23); 1Cor 15,20-26.28; Mt 25,31-46

Tema-Mensagem: – Toda honra, glória e poder ao Rei do Universo, Jesus Cristo crucificado-ressuscitado

Sentimento:  Júbilo de cavaleiro do grande Rei

 

 

Ícone “O Crucificado que falou a Francisco”

Introdução

Hoje, último domingo do ano litúrgico, celebramos o mistério do fim último de todas as coisas, de todos os povos, nações, pessoas e de todas as criaturas, afinal, o fim último do universo e de toda a história. Segundo o Evangelho de hoje, naquele dia, seremos congregados ao redor do grande, belo e bom pastor, o Cordeiro imolado e imaculado, o Cristo crucificado-ressuscitado, Rei do Universo. Então, diante Dele, como num espelho, veremos nossa sentença final de “benditos do Pai” ou de “malditos”.

 

  1. Deus promete fazer-se pastor de suas ovelhas, Israel

Quem nos introduz no mistério desta solenidade é o profeta Ezequiel. Para entender a perícope de sua profecia, usada hoje como primeira leitura, é preciso ter em mente a decadência dos dirigentes do povo judaico, em especial de seus reis. Tudo o que aquela gente estava fazendo pode ser resumido nesta constatação: em vez de apascentar se apascentavam, em vez de servir se serviam do povo, tratando seus irmãos com crueldade, violência e se aproveitando deles como escravos. Assim, muitos fugiram e se dispersaram por entre povos vizinhos, pagãos, impedidos, muitas vezes de realizar seus compromissos mais sagrados: suas devoções e seu culto a Jahvé.

Para este povo abatido e abandonado, porém, soa a voz do Senhor: “Vede! Eu mesmo vou procurar minhas ovelhas e tomar conta delas. Como o pastor toma conta do seu rebanho... assim eu vou cuidar de minhas ovelhas”. Para diferenciar seu modo de reinar com o dos seus representantes, os dirigentes e dos deuses dos pagãos, porém, Deus usa a figura do bom pastor que apascenta e dá sua vida pelo seu rebanho. E, consequentemente, este deveria ser também o espírito, o modo de reinar de todos os dirigentes de Israel.

Ezequiel, então, anuncia que os maus pastores estão com os dias contados. Pois Deus mesmo virá para reunir suas ovelhas dispersas, abandonadas, para reconduzi-las à sua própria terra e apascentá-las em pastagens férteis e tranquilas (vers. 11-12). Mais: Deus, o Bom Pastor, irá procurar cada ovelha perdida e tresmalhada, cuidar da que está ferida e doente, vigiar a que está gorda e forte (vers. 16); além disso, julgará pessoalmente os conflitos entre as mais poderosas e as mais débeis, a fim de que o direito das fracas não seja pisado (vers. 17).

Toda esta auspiciosa notícia profetizada por Ezequiel ressoa no coração do salmista do Salmo 22/23 e de cada um de nós, hoje: “O Senhor é meu pastor: nada me faltará”. O salmista ou fiel de ontem e de sempre sabe, por experiência própria, que a bondade e a graça hão de acompanhá-lo todos os dias de sua vida e que habitará na casa do Senhor para todo o sempre. Eis com que bondade, cuidado e misericórdia se rege o Senhor Deus, o bom e belo Pastor em relação a nós suas ovelhas!

 

  1. Cristo ressuscitado primícias da ressurreição de todos os homens                                                                  

 Deus estima criar os homens não apenas para tê-los como seus filhos queridos, mas também para destiná-los a participar da sua glória. Esta destinação, porém, não se realiza como efeito de uma ordem de um patrão ou chefe ou repentinamente ao toque de uma vara mágica, mas através de uma longa história, chamada de “História da salvação”, cujo centro é seu Filho Jesus Cristo que se encarna para assumir a humanidade como sua esposa e pela qual dá sua vida até a morte e morte de cruz. Assim, segundo São Paulo, Cristo ressuscitado dos mortos torna-se as primícias de todos os que morreram. É o que ele nos anuncia na 2ª leitura de hoje: “Na realidade, Jesus ressuscitou dos mortos como primícias daqueles que morreram”. Isto significa que a ressurreição de Cristo antes de individual é um evento coletivo, uma raiz comum a todos aqueles aos quais Ele se uniu e através desses, a todas as demais criaturas terrestres e celestes. E, para explicar e realçar esta dimensão universal, cósmica da ressurreição inventa a feliz metáfora do novo Adão. Se o primeiro Adão conduziu sua humanidade à morte, Cristo, o segundo Adão conduz os seus à ressurreição.

A imagem de Cristo-primazia leva Paulo a imaginar o processo da ressurreição como uma realidade organizada de modo cronológico e hierárquico. Ou seja: Cristo ressuscitou por primeiro a modo de primícias, como célula-mãe da nova criação, do novo mundo. Depois, na sua parusia, irão aqueles que são Dele e, logo em seguida, será posto o ponto final desta história toda: a morte como “o último inimigo a ser destruído” (v. 26). Entretanto, entre o ponto inicial – “as primícias” da Ressurreição de Cristo - e final – a ressurreição daqueles que o seguiram e estão com Ele – há uma longa história de uma luta cheia de reveses entre Cristo e sua mensagem e as potências deste mundo. Uma luta que só terminará “quando todas as coisas estiverem submetidas a Ele, e então, o próprio Filho se submeterá Àquele que lhe submeteu todas as coisas, para que ele seja tudo em todos” (v.28). Paulo, então, através de metáforas (grão semeado na terra, corpos celestes e corpos terrestres (1Cor 15,15-49), faz questão de realçar, ainda, que o grande evento final da evolução humana em Cristo se reveste de um colorido cósmico, corporal, terrestre.

 

  1. Um julgamento de rei

Tudo o que o profeta Ezequiel previu e profetizou, tudo o que Paulo revela como evento, isto é, como realidade misteriosa em andamento na história, Jesus anuncia como Boa Nova para toda a humanidade no Evangelho do Juízo final. O centro desta mensagem não está propriamente no fim do mundo com seus acontecimentos e julgamento, mas na necessidade ou importância de chegarmos lá devidamente preparados, isto é, identificados com sua pessoa, o Filho do Homem. Só assim poderemos ouvir dele: “Vinde benditos de meu Pai. Tomai posse do reino que meu Pai vos preparou desde a criação do mundo”.

  1. O Filho do Homem que se torna rei universal

O evangelho do Julgamento final não pode ser lido fora do grande Sermão da montanha, principalmente de sua conclusão: aqueles que ouvem a sua palavra e a põem em obra são como um homem sensato que constrói sua casa sobre a rocha; já aqueles que ouvem a sua palavra e não a põem em obra são como um homem insensato que constrói sua casa sobre a areia. A casa do primeiro permanece de pé frente às intempéries. Já a do segundo cai em ruína (Mt 7, 21-27). Aqueles que ouvem sua palavra, mas não a põem em obra recebem, ao fim, a dura palavra: “nunca vos conheci! Retirai-vos para longe de mim, fautores da anarquia” (Mt 7, 23).

Está muito claro que o protagonista desta parábola não é outro senão o Filho do Homem que então vem marcar sua presença como Rei do universo. Universo, aqui, mais que um fenômeno de globalização que tudo achata e despersonaliza, indica o modo de ser, de estar voltado, virado, vertido para o uno, o originário que a tudo e a todos respeita em sua individualidade e diversidade. Assim “Rei do universo” aponta para aquele Um, aquela raiz ou força originária que erige todas as coisas, que as sustenta e as dirige à sua consumação não pela força dos poderosos deste mundo, mas pela benignidade de um menino que nasce de uma virgem pobrezinha e que é posto num presépio e que, finalmente, condenado injustamente, morre pacificado e pacificante numa cruz. Um Rei que sendo o máximo, se faz o mínimo e cujo senhorio é serviço, cuja onipotência coincide com a fragilidade, isto é, a fraqueza e a ternura do amor-doação.

Sim, Jesus Cristo reina a modo de criança como se vê nesta antiga anedota sobre Mestre Eckhart, de como ele encontrou-se com um menino nu:

Perguntou-lhe donde vinha. “Venho de Deus”, disse ele. “E onde o deixaste?”. Perguntou o mestre. E a resposta foi: “Nos corações virtuosos”. “Para onde vais?” “Para Deus!”. “Onde o encontras?” “Onde larguei todas as criaturas”. “Quem és tu?” “Sou um rei!” “Onde está o teu reino?” “No meu coração”. “Toma cuidado que ninguém o compartilhe contigo!” “É o que faço”. Depois disso o conduziu à sua cela e disse: “toma a veste que queiras!”.  E o menino recusou: “Deixaria de ser rei!”. E desapareceu. Disse-se que fora o próprio Cristo que viera se divertir com Ele.

  1. Ovelhas a direita e cabritos a esquerda

A palavra sobre o juízo final é pronunciada dois dias antes da páscoa em que o Rei dará a sua vida como Cordeiro-Servo de Deus e a retomará, em seguida, por sua ressurreição. A sua ressurreição é, pois, colocada como o princípio da nova humanidade promovida pelo seu Reino. Ela antecipa a modo de primícias a ressurreição dos mortos (Cf. segunda leitura de hoje). Jesus é o filho de Deus que se faz Filho do Homem para, através de seu sacrifício na cruz e de sua ressureição, com seus braços estendidos,  recolher na unidade os filhos de Deus dispersos (Cf. Jo 11, 52). Eis o seu Reino para o qual agrega e institui os seus enviados (apóstolos), que apascentariam as suas ovelhas não a partir da violência e da opressão, nem a partir da ciência deste mundo, muito menos do interesse do ganho e do lucro, mas a partir do amor, da sabedoria da cruz, isto é, da misericórdia (Cf. Jo 21, 15).

 Também aqui se revela a dimensão universal deste Rei e de seu Reino, já comentado acima no item 2. Ele vem com todos os seus mensageiros (ángeloi) que, para os Padres da Igreja, podem ser tanto os espíritos celestes (“anjos”) quanto os pregadores. Eles comparecem para dar testemunho do ministério que exerceram em favor da salvação dos homens. E todos os povos se reunirão para serem julgados (v. 32). A sua manifestação atinge toda a terra: “de fato, assim como o relâmpago parte do oriente e brilha até o ocidente, assim sucederá na vinda do Filho do Homem” (Mt 24, 27). Na luz desta manifestação, diz Orígenes, todos os homens entrarão no conhecimento de si mesmos. Santo Agostinho, por sua vez, diz que à memória de cada um serão trazidas as suas obras - boas e más - que serão vistas com admirável celeridade pela mente, a fim de que o entendimento acuse ou desculpe a consciência.

E serão separados, então, os justos dos injustos. Os justos são chamados, aqui, de ovelhas, seja em virtude de sua mansidão (Mt 11, 29), de sua simplicidade e inocência, seja em virtude de vida oferente-sacrifical (Is 53, 7). Já os injustos são chamados de cabritos, cujo título, para o mesmo Orígenes, é bem adequado para os injustos, pois estes animais sobem nos penhascos, beiram os precipícios, invadem e saqueiam as pastagens alheias. Crisóstomo recorda a utilidade da ovelha que oferece ao pastor tantos préstimos e a inutilidade dos cabritos. Por isso, Jerônimo observa que o evangelho não fala de cabras, que ainda, de certo modo, são úteis, principalmente pelo seu leite, mas de cabritos.

As ovelhas serão postas ao lado direito do Rei e os cabritos do lado esquerdo. Direita e esquerda, aqui, provavelmente, significam a bem-aventurança e a desgraça. Assim, aqueles que foram justos, isto é, eretos e retos, que guardaram o direito, vivendo a justiça do Reino, ficarão do lado destro do Rei e deste lado encontrarão descanso e glória. São os benditos do Pai. Estes receberão o Reino como uma herança familiar. São os filhos do Reino. São os irmãos de Jesus, que fizeram a vontade do Pai (Mt 12, 50). Que estes viveram retamente, segundo a justiça do Reino, se manifesta nos méritos que o Rei evoca a respeito deles: as sete obras de misericórdia que credenciam os Filhos do Reino a tomarem posse de sua herança. Estas obras, podem ser, segundo os Padres da Igreja, tanto obras de misericórdia corporal quanto obras de misericórdia espiritual.

  1. A causa do julgamento

 Os justos, no entanto, são humildes. Por isso, surpreendentemente, não se reconhecem em tais méritos. O prêmio do Reino lhe parece imerecido. Aqueles que foram injustos, porém, que seguiram a via sinistra da iniquidade, da desventura, do desamor, da falta de misericórdia, ficam do lado esquerdo do Rei. Ainda que tenham confessado o seu nome e professado a fé n’Ele viveram de modo torto, apartados efetivamente d’Ele. Por isso, no juízo, são apartados do Rei. Eles se desculpam, o que mostra a sua soberba. Mas, estas desculpas de nada lhes servem. Orígenes observa como os justos são chamados pelo Rei de “benditos de meu Pai” e os injustos, porém, não são chamados de malditos “de meu Pai”, mas apenas de “malditos”. Com efeito, o Pai é sempre autor da bênção, jamais da maldição. Pois, na verdade, o autor da maldição é cada um para si mesmo, enquanto pratica obras de iniquidade.

O desfecho é o seguinte: enquanto os justos (misericordiosos) recebem a misericórdia e vão para a vida perene, os injustos (impiedosos), que forneceram para si mesmos a maldição, vão para a punição perene. Tornam-se dignos de sofrimento eterno aqueles que aniquilam em si mesmos o bem que poderia ser eterno (Agostinho). Deus não se compraz com esta miséria, porque é misericordioso (Gregório Magno). Mas toma a sério nossa liberdade. Se escolhermos a morte eterna, isto é, o viver eternamente separados de Deus, ele respeita esta nossa escolha. Ao final das contas, os que não mostraram misericórdia pelos outros homens, mostram que não têm misericórdia de si mesmos (Cf. Eclo 30, 24). Os que foram misericordiosos, porém, com os outros, mostram que foram misericordiosos consigo mesmos.  Estes recebem o acesso à vida eterna. A vida eterna, porém, é o nosso sumo bem. É a paz. É o conhecimento de Deus (Jo 17, 3), quando os filhos do Reino o verão tal como ele é e serão tal como ele é (1 Jo 3, 2).

Desde a encarnação, não se pode separar Cristo, o Filho de Deus e filho do homem, de seus irmãos. Daí a sentença: “Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos... foi a mim que o fizestes” (Mt 25). Entende-se, assim, o cuidado de São Francisco pelos enfermos, especialmente pelos leprosos, enfim, pelos mais miseráveis dos homens. No Sermão da Montanha, no ato inaugural da proclamação das bem-aventuranças, Cristo proclama bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. Estas palavras - «Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia» —  pergunta o papa João Paulo II, na encíclica Dives in Misericordia,

...não constituem, em certo sentido, uma síntese de toda a Boa-Nova, de todo o «admirável intercâmbio» (admirabile commercium) nela contido, que é uma lei simples, forte e ao mesmo tempo «suave», da própria economia da Salvação? Estas palavras do Sermão da Montanha, mostrando desde o ponto de partida as possibilidades do «coração humano» («ser misericordiosos»), não revelarão talvez, na mesma perspectiva, a profundidade do mistério de Deus: isto é, aquela imperscrutável unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo, em que o amor, contendo a justiça, dá origem à misericórdia, a qual, por sua vez, revela a perfeição da justiça?

É nesta mesma tonalidade que nos fala o Papa Francisco: “Se realmente queremos encontrar Cristo, é preciso que toquemos o seu corpo no corpo chagado dos pobres, como resposta à comunhão sacramental recebida na Eucaristia. O Corpo de Cristo, partido na sagrada liturgia, deixa-se encontrar pela caridade partilhada no rosto e na pessoa dos irmãos e irmãs mais frágeis. Continuam a ressoar de grande atualidade estas palavras do santo bispo Crisóstomo: «Queres honrar o corpo de Cristo? Não permitas que seja desprezado nos seus membros, isto é, nos pobres que não têm o que vestir, nem O honres aqui no templo com vestes de seda, enquanto lá fora O abandonas ao frio e à nudez» (Hom. in Matthaeum, 50, 3: PG 58) (Mensagem do santo padre Francisco para o dia mundial dos pobres).

Conclusão

São Francisco, intuiu muito bem a realeza universal de Cristo por ocasião de seu encontro com o Crucificado de São Damião. Por isso, exultante e jubiloso, vivia proclamando que era “o arauto do grande Rei” (1C 16). Mais adiante, numa conversa familiar com Cristo, recebeu dele a seguinte revelação:  "Francisco, dirás isto ao Papa: uma mulher pobrezinha, mas formosa, morava num deserto. Um rei apaixonou-se por ela por causa de sua grande formosura; desposou-a todo feliz e teve com ela filhos belíssimos. Quando já estavam adultos e nobremente educados, a mãe lhes disse: ‘Não vos envergonheis, meus queridos, porque sois pobres, pois sois todos filhos daquele grande rei. Ide com alegria para sua corte, e pedi-lhe tudo que precisais’. Surpresos e felizes por ouvirem isso e orgulhosos por saberem que eram de linhagem real, e prevendo que seriam os futuros herdeiros, consideraram riqueza toda sua pobreza” (2C 16).

Além do mais, a solenidade de Cristo Rei do universo, neste momento crítico do relacionamento do homem com as demais criaturas, nos leva a recordar as exortações do nosso Papa Francisco: “sendo criados pelo mesmo Pai, estamos unidos por laços invisíveis e formamos uma espécie de família universal, uma comunhão sublime que nos impele a um respeito sagrado, amoroso e humilde” (LS 89). E mais adiante insiste: “Não é por acaso que São Francisco no cântico onde ele louva a Deus pelas criaturas acrescenta o seguinte: ‘Louvado sejas, meu Senhor, por aqueles que perdoam por teu amor’.  Tudo está interligado. Por isso exige-se uma preocupação pelo meio ambiente, unido ao amor sincero pelos seres humanos e a um compromisso constante com os problemas da sociedade” (LS 91).

Fraternalmente,

Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini, ofm

32º DOMINGO DO TEMPO COMUM – ANO “A”

12/11/2017

Pistas homilético-franciscanas

Leituras: Sb 6,12-16; Sl 62(63); 1Ts 4,13-18; Mt 25,1-13

Tema-mensagem: Como noivas cheias de amor aguardemos vigilantes a vinda do esposo Jesus 

Sentimento: vigilância sábia

 

Parábola das dez virgens

Introdução

Nunca como hoje, nos últimos séculos, somos despertados pela Igreja de que o encontro com Jesus Cristo é o princípio e o sentido de toda a nossa vida e missão cristã, nossa alegria e júbilo maior (Cf. EG). Por isso, as três leituras de hoje nos convocam à sabedoria vigilante ou, se quisermos, à vigilância sábia a fim de que jamais percamos nenhuma de suas visitas; que sejamos como virgens ou noivas sábias e prudentes, sempre preparados para abrir-lhe a porta de nosso coração quando vier, seja nos acontecimentos do nosso cotidiano, seja no último dia de nossa vida terrestre.

1. A sabedoria vem ao encontro de todos os nossos projetos

A primeira leitura de hoje é um pequeno trecho do livro da “Sabedoria de Salomão”, mais precisamente, da segunda parte que traz um “Elogia à Sabedoria” (Sb 6, 1 – 11, 3). Salomão convida os grandes do mundo, os reis, a entrarem na escola da sabedoria israelita, que é a sabedoria da fé e que traz salvação. Uma de suas novidades é a personificação da Sabedoria.  Seria, no caso, um simples recurso poético? De qualquer forma, a Sabedoria é celebrada como uma potência que preexiste à criação e que está junto de Deus (Cf. Sb 9, 9) e que procede da boca do Altíssimo (Cf. 24, 3.10.23). Neste caso, vem a se identificar com a Palavra criadora de Deus. Por isso, depois, muitos, como São Francisco, dizem que “Jesus Cristo é a verdadeira sabedoria do Pai” (2CF 67).

O pequenino trecho começa: “A sabedoria é resplandecente e sempre viçosa, incorruptível”. Isso significa que ela não apenas está na origem do homem e de cada criatura, mas também que é ela quem forma o homem e o transforma. Enquanto tudo o que é do homem envelhece, se corrompe e corrompe, ela e tudo o que dela se origina jamais muda, porque é sempre originária e a tudo faz rejuvenescer. Por isso, diz: “Ela até se antecipa, dando-se a conhecer aos que a desejam” (Sb 6,13). Não é por acaso que, depois, São Francisco a coloque como princípio de sua “Saudação das Virtudes”, exclamando: “Ave, rainha sabedoria, o Senhor te salve com tua irmã, a santa e pura simplicidade”. E, no final desta mesma Saudação, volta a exclamar: “Ave, vós todas santas virtudes infusas, pela graça e iluminação do Espírito Santo, nos corações dos fiéis, fazendo-os de infiéis em fiéis de Deus” (SV 1). Aqui podemos aplicar o que Santo Agostinho diz acerca da justiça: o homem justo pode deixar de ser justo; mas a justiça ela mesma não deixa nunca de ser justiça... O mesmo diga-se da sabedoria: o homem pode deixar de ser sábio, mas ela, a sabedoria, jamais deixará de ser Sabedoria, uma vez que ela “é imortal” (Sb 1, 15).

Em referência aos versos: “Quem se levanta cedo para a reencontrar não se afadigará. Sim, ela se encontra sentada à sua porta” (v. 14) e: “pois ela perambula em busca dos que lhe são dignos...” (v. 17), Eckhart tece diversos comentários. Entre eles destacamos este: Se alguém busca a Sabedoria é digno da sabedoria e a sabedoria é digna dele. 

A última sentença diz: “Pois ela mesma – a Sabedoria - sai à procura dos que a merecem e, cheia de bondade, aparece-lhes benevolamente nos caminhos e vai ao encontro deles em cada um de seus pensamentos” (Sb 6, 16). Como não ver aqui um presságio da graça, do amor!? Pois, são eles que sempre tomam a iniciativa, como diz Jesus: “ninguém pode vir a mim se não for atraído pelo Pai que me enviou” (Jo 6,44). Neste sentido, a Sabedoria poderia ser comparada a uma jovem que, com seu encanto sai pelas ruas e praças da cidade arremetendo seus olhares aos homens para que assim aquele que a desejar possa contemplá-la e encontra-la com facilidade. Em verdade, “ela, se manifesta aos homens em todas as obras para que através das coisas visíveis sejam conduzidos às invisíveis” (São Gregório). E ainda acentua que ela o faz, “cheia de bondade” (v16).

Segundo a lei da natureza, tudo aquilo que é buscado, enquanto permanece escondido e não se revela, oferece fadiga. A fadiga diminui, porém, quando aquilo que se busca começa a aparecer e a manifestar-se. Como não recordar aqui, o que diz o Anjo da Igreja de Laodicéia: “Eis que estou à porta e bato. Se alguém ouvir minha voz e me abrir a porta, eu me achegarei a ele, cearei com ele e ele comigo” (Ap 3,20).

Enquanto a primeira leitura fala de Deus que busca o homem, o Salmo de hoje fala do homem que busca Deus:

Senhor, sois o meu Deus: desde a aurora Vos procuro.

A minha alma tem sede de Vós. Por Vós suspiro,

como terra árida, sequiosa e sem água.

Santo Agostinho comenta dizendo que o desejo é a sede do coração. Nós estamos no deserto do mundo. Tenhamos, pois, sede de Deus.

 

2. O banquete nupcial do encontro definitivo com Cristo

Ao ouvirmos Jesus em seus discursos, aos observarmos seus atos e sentimentos, constatamos sempre uma única e grande preocupação: que todos conhecessem e aceitassem o grande desejo do Pai de reunir todos os homens como numa solene festa de casamento. Por isso, na liturgia de hoje, se proclama a parábola das 10 virgens.

2.1. As virgens que esperam o noivo

Se a primeira leitura falava da sabedoria vigilante, o evangelho de hoje fala da vigilância sábia. A parábola, revestida com a roupagem da alegria do ritual dos casamentos judaicos de outrora, faz parte do “discurso escatológico” de Jesus (Mt 24-25). Mateus, provavelmente, recordou-se desta parábola num dos momentos mais cruciais da vida da Igreja primitiva: era necessário reavivar o ânimo de muitos fiéis que começavam a sucumbir e a perder a fé diante das cruéis perseguições a que, então, eram submetidos. E Jesus, o Rei, o esposo cuja volta lhes fora prometida parecia estar longe. Era necessário recordar o fim, o sentido último de sua vida: Jesus – o noivo - pode demorar, mas sua vinda é certa embora inesperada; que nada, nenhum sacrifício se compara com o júbilo, a alegria de poder entrar para a solene festa final semelhante à festa de um banquete nupcial.

Como na parábola da “veste nupcial” (Mt 22,11-12), também aqui, o acento está na exortação: que estejamos preparados a fim de podermos receber o noivo e participar de seu banquete.

As “Dez moças”, amigas da noiva (madrinhas do casamento), estão divididas em: prudentes e insensatas. Mateus já tinha concluído o primeiro discurso do seu evangelho, o Sermão da Montanha, falando do homem prudente, que constrói sua casa sobre a rocha, e do homem insensato, que a constrói sobre a areia (7, 24-27). Prudência é inteligência prática: tino, juízo; saber decidir e ser capaz de agir conforme esta decisão sábia. E, segundo o Evangelho, prudente é o homem que ouve a palavra de Jesus e a põe em prática; insensato é quem não o faz. “Não é o que diz ‘Senhor, ‘Senhor’ que entrará no Reino dos céus, mas o que ouve a palavra de Deus e a põe em prática” (Mt 7,20-21).

A parábola das “Dez virgens ou moças” fala, pois, da necessidade de estar preparado para o encontro definitivo com Cristo na sua parousia (vinda definitiva). Os prudentes são os que vão ao encontro do Cristo preparados; os insensatos, os que não estão preparados.

2.2. A Igreja, a humanidade como Reino de Deus

Quanto ao “Reino dos céus”, aqui, Gregório Magno observa que no presente momento, é a Igreja (Cf. Mt 13, 41). Esta parábola, assim, se aplica à Igreja como um todo. O esposo é Cristo, o Deus encarnado. E a esposa a humanidade com a qual o Filho de Deus se uniu, pela sua encarnação e pela qual deu sua vida na Cruz e agora no banquete eucarístico. Ou, numa outra interpretação, a própria Igreja. Mas, certamente, mesmo nesta interpretação, a Igreja representa toda a humanidade com a qual o Filho de Deus, por meio de sua encarnação, quis se unir. Os cristãos são como as amigas da noiva. Entre esses há os que se preparam – virgens prudentes – e os desleixados – virgens imprudentes - que nada fazem para se preparar e que, por conseguinte jamais poderão entrar para a festa e para o banquete de casamento.

A parábola, portanto, para o cristão, expressa uma forte exortação à necessidade de estar preparado para o Grande Dia do encontro definitivo com Jesus, tanto de cada um em particular no dia de sua morte terrena como comum a todos os homens no fim dos tempos.

2.3. Sono e falta de óleo

As virgens insensatas, portanto, correspondem àqueles fieis que creem, mas que não vivem de modo justo, isto é, não praticam as boas obras da misericórdia e não se perfazem nas virtudes próprias de um seguidor de Cristo, o sábio e prudente por excelência (Cf. Mt 6, 16). Por isso, têm apenas um pouco de óleo nas suas lâmpadas. Nada o suficiente para caminhar para o encontro do noivo... As moças prudentes, porém, são os fiéis que não só creem, mas também apresentam boas obras a partir das virtudes, conforme São Jerônimo. Santo Agostinho, porém, vê no azeite da lâmpada uma figura da alegria, conforme diz o Salmo (44/45,8): “Amas a justiça, detestas o mal, por isso Deus, teu Deus, te ungiu com um óleo de alegria, de preferência a teus companheiros”. Já, para Orígenes, o óleo é a palavra divina que confirma na fé e que ilumina com as boas obras.

O foco da narrativa, porém, não está no fato de as jovens terem adormecido. Isto é normal. Depois de um logo dia ou semana de trabalho, o homem precisa descansar e dormir. O centro da narrativa está no fato de que “No meio da noite, ressoou um grito: ‘Eis o Esposo! Saí ao seu encontro!’”. Cristo vem quando não se sabe e quando não se espera. Vem de repente, numa hora intempestiva. Por isso, mesmo quando vai descansar ou dormir deve fazê-lo, sempre com as vasilhas cheias com o “óleo” do ardor da esperança. O que importa, então, é que o homem não retarde sua conversão deixando-se levar pelo vício da “acídia”. Orígenes vê nesta passagem do Evangelho uma alusão a este vício capital. Tomás de Aquino ensinava que a acídia é uma tristeza. Esta tristeza pode estar na base seja do ativismo (agitação), quanto na base da inércia. São Francisco diz que a acídia é o modo de ser dos homens “mortos de coração” e “negligentes em começar as coisas boas e em completar as começadas” (SC 22). Na verdade, tais pessoas são como mortas.

 A hora da chegada de Cristo – hora da celebração do matrimônio sagrado – é, segundo Santo Hilário, quando Deus e a natureza humana serão definitivamente um – quando Deus será tudo em todos e a baixeza de nossa carne será transformada na glória espiritual: a ressurreição. As bodas são a aquisição da imortalidade e a união da corrupção com a incorrupção por um novo consórcio entre Deus e o homem (Santo Hilário).

Soa então o momento do juízo final, de que fala Mateus no mesmo capítulo 25 e as moças néscias descobrem que o azeite que trazem não basta para fazer o cortejo ao Esposo. Tentam então obtê-lo das moças prudentes. Estas, porém se recusam, pois poderia vir a acabar para as outras e para elas mesmas e o Esposo ficaria sem o cortejo nupcial. Isto é: no juízo, as obras dos outros de nada nos servirão. A cada um servirão só as próprias obras. Não se compensam os vícios próprios com as virtudes dos outros. Ou seja, a preparação para o banquete é sempre pessoal e insubstituível.

2.4. Não vos conheço

As moças descuidadas saem para procurar o azeite. Quando voltam, encontram a porta já fechada. O tempo da penitência, da misericórdia, da aprendizagem, tinha passado. Portanto, é sempre preciso ver a preciosidade do tempo que cada um tem a seu dispor. Depois do juízo não tem mais lugar para as boas obras e a justificação: a porta está fechada (Jerônimo). De que então serve invocar agora Aquele que antes fora negado com as obras?

A resposta do Esposo é: “não vos conheço”. Esta fala também lembra a conclusão do Sermão da Montanha: “Nunca vos conheci, afastai-vos de mim, vós que cometestes a iniquidade” (7, 23). Bonhoeffer comenta:

“Nunca vos conheci”. Este é, portanto, o segredo mantido desde o início do discurso da montanha até esta conclusão. Esta somente é a pergunta: se somos ou não conhecidos por Jesus.

...

Neste ponto subsiste só ainda a sua palavra: Eu te conheci. Esta é a sua palavra eterna, o seu eterno chamado...

 

Mas, o que é ou o que fazer para ser conhecido pelo esposo? Responde Bonhoeffer:

Quem, no seguimento, não se atém a outra coisa e não se apega a outra coisa que não seja esta palavra, deixando perder todo o resto, terá o sustento desta palavra no juízo final. A sua palavra é a sua graça[1].

No fim das contas, fica a advertência: “Vigiai, pois, porque não sabeis nem o dia nem a hora”. Santo Agostinho comenta: “Não só ignoramos em que tempo deve vir o Esposo, mas também a hora da morte, para a qual cada um deve estar preparado, e mesmo preparado, será surpreendido quando soa aquela voz, que despertará a todos”.

Conclusão

            A busca pelo sentido último da vida, do homem e da história, sempre foi, é e será uma das ocupações ou preocupações mais agudas e penosas de todas para todos. Sim, onde todos, homens e criaturas, vamos parar? Jesus responde: na festa de um grande banquete de casamento preparada pelo meu Pai e na qual eu serei como um noivo, um esposo para toda a humanidade.

Mas, para poder participar desta festa é preciso que todos e cada um, a exemplo das virgens prudentes, cheguemos àquele dia preparados; “que não larguemos jamais o ardor evangélico pelo gozo espúrio, mundano de uma autocomplacência egocêntrica; que não neguemos a nossa história de Igreja que é gloriosa por ser história de sacrifícios, de esperança, de luta diária, de vida gasta no serviço, de constância no trabalho fadigoso, porque todo trabalho é ‘suor do nosso rosto’ (EG 96). Que não nos afastemos jamais da “verdadeira luz, Nosso Senhor Jesus Cristo... a verdadeira sabedoria do Pai” (São Francisco, 2CFi,67).

Fraternalmente,

Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini, ofm

 

 

[1] Sequela, p. 181-

30º DOMINGO DO TEMPO COMUM – ANO “A”

29/10/2017

Pistas homilético-franciscanas

 

Leituras: Ex 22,20-26; Sl 17(18); 1Ts 1,5c-10; Mt 22,34-40

Tema-mensagem: Viver na unidade da caridade, que se opera no duplo amor: de Deus e do próximo.

Sentimento: Alegria e gratidão por podermos comungar do amor de Deus e do próximo

 

São Francisco assiste os leprosos

(Bonaventura Berlinghieri – 1210-1287 -  Basílica de Santa Cruz em Florença)

 

Introdução

Depois das controvérsias sobre o tributo a César (Cf. Mt 22,15-22) e sobre a ressurreição dos mortos (Cf. Mt 22,23-33), chega a controvérsia sobre o maior mandamento da Lei (Cf. Mt 22,34-40). No contexto do Evangelho de hoje, estão os debates dos dirigentes religiosos judaicos, sacerdotes e escribas, intérpretes da Lei, com Jesus. Seu objetivo é poder pegá-lo e entregá-lo à autoridade romana para, assim, ser condenado à morte.

 

  1. Dos fariseus e de seu fanatismo pelas leis e tradições

Quem no Evangelho de hoje toma a iniciativa da provocação são os fariseus: “Os fariseus, ouvindo falar que ele emudecera os saduceus, reuniram-se contra ele. E um deles, especialista na Lei, propôs-lhe uma questão para pô-lo à prova”.

Os fariseus, diferentemente dos saduceus e sacerdotes, que primavam mais pelos rituais do Templo, davam destaque à Lei, à Torah e a seus requerimentos em vista do povo comum. Desde sua obscura origem, no século I a.C., eles estão em tensão com os sacerdotes mais graduados e seu partido, o dos saduceus. O farisaísmo, tal como o conhecemos a partir da polêmica cristã, que aparece nos evangelhos, é uma decadência do modo de ser e de viver do fariseu originário. O que predomina neles é o legalismo, o rigorismo, que distancia o homem de Deus. E, acima de tudo, faz preferir sua autenticidade e santidade, à santidade de Deus; faz preferir a justiça própria à justiça de Deus, que é amor e misericórdia. É o fanatismo ético dos que se consideram a si mesmos como “justos”; é o fundamentalismo religioso dos que procuram se distinguir dos demais homens como os “pios”, os “puros”, os “separados”. Acerca deste fanatismo escreve Bonhoeffer:

O fanático crê ser capaz de opor-se ao poder do mal com a pureza da sua vontade e do seu princípio. Mas o fanatismo, dado que por sua natureza perde de vista a totalidade do mal e se lança como o touro contra o pano vermelho, antes que contra quem o segura, acaba por se enfraquecer e sucumbir. O fanático fariseu erra o alvo. O seu fanatismo, mesmo pondo-se a serviço dos outros bens da verdade ou da justiça, se perde antes ou depois no inessencial, nas pequenas coisas, e cai na rede do mais astuto adversário (Bonhoeffer, D. Ética, p. 56).

O fariseu, nos evangelhos, é o oposto de Jesus. Fariseu, ali, é todo o homem, enquanto todo o homem vive da consciência do bem e do mal. É o homem dividido, de duas almas (dipsychos). É o homem admirável que subordina tudo à consciência do bem e do mal, que julga severamente não só o outro, mas também a si mesmo, para honrar a Deus. São estes homens do conflito ético de ontem e de hoje que se voltam contra Jesus e sua Boa Nova, o reino dos Céus, a vontade do Pai que quer a misericórdia e não o sacrifício.

 

  1. Dois mandamentos num só

Pois bem, este fariseu indaga a Jesus: “Mestre, qual é o grande mandamento da Lei?” A hipocrisia é patente: por que chama Jesus de Mestre se não põe fé em suas obras, muito menos em sua pessoa? Por que quer prová-lo? E qual seria a prova? Não o sabemos bem. Talvez fosse apenas para desqualificá-lo como mestre perante o público, pois como estaria ele em condições de responder a tão importante questão se já por diversas vezes parecia não apenas não se importar com a lei, mas até ser um dos seus transgressores? Enfim, como o público podia ir atrás de um mestre que pouco ou nada entendia da Lei? De fato, este era um dos pontos altos de um bom religioso judeu: conhecer e observar item por item a Torah com seus 613 preceitos dos quais 365 eram proibições e 248 ações. Por isso, a pergunta do legista vai na direção da escolha de um dos mandamentos como sendo “o grande”, o “primeiro”.

A resposta de Jesus soa clara e certeira: “‘Amarás o Senhor teu Deus de todo o coração, com toda a tua alma e com toda a tua mente’. Eis o grande, o primeiro mandamento. Um segundo é igualmente importante: ‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo’. Desses dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas”. Jesus apresenta, pois, o duplo amor a Deus e ao próximo como sendo o resumo - o sumo, o ápice, o máximo, a fonte e o cume - da Lei e dos Profetas: Revelação divina do Antigo Testamento.

A resposta de Jesus não era nova, pois estava bem em consonância com Dt 6,5 no que diz respeito ao amor a Deus e com Lv 19,18 no que diz respeito ao amor ao próximo. Também sua unidade já havia sido aceita em Israel desde o Rabi Hillel (60 a.C – 6 d.C.). A novidade está, primeiramente, em insistir que deles “dependem” toda a Lei e os Profetas. Ou seja, sem eles, a exemplo da árvore, sem a raiz, a Lei e os Profetas inexistem. E em segundo lugar, a necessidade de conservá-los unidos e não apenas no nível de ensinamento acadêmico, mas também e principalmente, como princípio elementar, básico, fundamental da formação religiosa pessoal bem como da construção de toda a comunidade religiosa e civil. Assim, a originalidade da resposta está em apontar e convocar para a sua “originariedade” (vigor da origem). Ou seja, fugindo de problematização, e conflito proposto, Jesus procura reconduzir o legista à simplicidade originária da unidade do duplo mandamento do amor: Deus e, ao mesmo tempo, o próximo.

A exemplo do sujeito que por estar tão fascinado pelas árvores não consegue ver a floresta, os fariseus, presos às inúmeras leis, preceitos e proibições não conseguiam mais ver, seguir e admirar o princípio supremo, a raiz que as unia e justificava: Deus e os próximos. Ora, quando isso acontece, isto é, quando o homem vive sem um princípio unificador, perde sua unidade e vive fraccionado em mil e um compartimentos estanques dos quais tem que prestar contas através de uma consciência cada vez mais atormentada. Com uma divisão em tantos fragmentos insignificantes a vida vai se autodestruindo, uma vez que o homem, jamais poderá cultivá-la a contento. Era o que estava acontecendo no tempo de Jesus e (como não?), muitas vezes, hoje e sempre. 

O amor a Deus e o amor ao próximo como a si mesmo são um único imperativo: “amarás”, que deve se desdobrar no dia a dia, nas grandes e pequenas coisas, com tudo e com todos. Na verdade, como disse São Jerônimo, tudo o que Deus ordena – até mesmo o simples abrir ou o fechar de uma porta - é grande. E tudo o que ele ordena se resume na grandeza – na magnanimidade do amor. O Pseudo-Crisóstomo observa: Deus manda amar. Não exige o temor. Mas requer o amor.

Amarás, disse, e não temerás, porque amar é mais que temer; temer é próprio dos servos, e amar é próprio dos filhos. [...] O Senhor não quer que os homens O temam de um modo servil, e como a um amo, mas que se O ame como pai, uma vez que concedeu aos homens o Espírito da adoção.

Um traço essencial deste amor é a gratuidade: não um amor que ama por dívida, como resposta a um mérito, mas que ama   por própria iniciativa, livremente, gratuitamente, de modo superabundante (perisson, diz o Sermão da Montanha – Mt 5, 46ss).  Por isso, o amor ao próximo se alarga universalmente para incluir o amor ao inimigo. Trata-se, porém, de um amor universal concreto. Isto é, a universalidade do amor não se degenera numa generalidade esquemática. Por isso, o latim em vez de amar usa o verbo “diligere” e o grego “agapáo”. “Diligere” e “agapáo” significa amar com diligência, com doação até com o sacrifício da própria vida, se for o caso, como muito bem aparece com Cristo, principalmente na Última Ceia e na Cruz.

 

  1. Amar no amor que é Deus: pedra fundamental para a constituição do novo Povo de Deus

Quem nos fala bem direta e concretamente desta dimensão universal do amor a Deus e ao próximo é a primeira leitura de hoje, tirada do livro do Êxodo; uma exortação que nos abre os olhos e o coração frente aos desdobramentos sociais, eclesiais e cotidianos da justiça do amor, que é misericórdia. No deserto do Sinai, o Senhor faz aliança com seu povo. É um pacto de amor. Este pacto inclui o dom dos mandamentos. Os mandamentos, recolhidos nas Dez Palavras (Decálogo), são para Israel o cerne da Torah, do ensinamento do caminho que conduz à vida. Os comandos de Deus são a expressão de seu bem-querer pelo seu povo. É por amar o seu povo que Ele dá as coordenadas do seu caminhar, para que este povo possa encontrar a terra boa e a vida plena e, assim, ser feliz. Os imperativos dos mandamentos, portanto, são mais que comandos de um Deus ciumento. São recomendações de um Deus amoroso, para a felicidade, para a bem-aventurança do seu povo. De sua misericórdia devia nascer cidadãos e religiosos atentos às aflições dos estrangeiros, dos órfãos, pobres e viúvas, enfim, um povo que deve brilhar entre os demais povos por sua misericórdia.

Quem, 1200 anos depois, compreendeu e concretizou este mandamento, de modo admirável, foi São Francisco com suas três Ordens, principalmente com a Terceira, composta só de leigos ou seculares. Quando estes, a fim de poder segui-lo e imitá-lo na reconstrução da Igreja e do mundo, vivendo no mundo e com as coisas do mundo, lhe pediram uma regra, ordenou-lhes o mesmo que Cristo ordena no Evangelho de hoje, acrescentando: “oh, quão felizes serão vocês se fizerem isto até o fim. Pois, então, sobre vocês repousará o Espírito do Senhor e vocês serão filhos do Pai celestial, esposos, irmãos e mães de Nosso Senhor Jesus Cristo” (Cf. ROFS). Foi observando e seguindo este mandamento que aqueles seguidores de São Francisco proporcionaram o surgimento de uma sociedade mais fraterna e justa, isto é, menos elitista e menos dividida entre “maiores” e menores”; uma sociedade desarmada (sem armas) e sem as beligerâncias e os intermináveis conflitos e guerras entre os castelos e seus príncipes.

 

  1. Amar a si mesmo

Além de amar a Deus e ao próximo, o grande mandamento ordena também que cada um ame a si mesmo. Amar a si mesmo parece tarefa fácil e agradável porque, à primeira vista, poderíamos pensar que esse mandamento estivesse nos convocando para dar vazão ao egoísmo: cuidar tão somente dos interesses e gostos próprios e subjetivos, particulares ou grupais e que São Paulo chama de “eu carnal”. O “eu” do homem é sempre e cada vez constituído numa forma de existência. O homem pode constituir o seu eu de modo “carnal” (egoísta) ou de modo “espiritual” (no sentido do si-mesmo pneumático). O eu da carne, porém não é o verdadeiro “eu” do homem porque, voltado unicamente para seus interesses egocêntricos, na maioria das vezes superficiais, não permite ao homem mergulhar mais para o profundo e íntimo do seu si-mesmo de onde ele pode constituír o outro e verdadeiro “Eu”, o “Eu” espiritual, voltado para os grandes e eternos valores, como, por exemplo: Deus, o perdão, a misericórdia, a Paz e o Bem e, acima de tudo, a vocação de ser e fazer-se imagem e semelhança de seu Deus, Pai e Criador (Cf. Rm 7,14-26). Amar a si mesmo significa, pois aprender a olhar para si como Deus o vê, o quer e o ama. Feliz o homem que vem a ser o que ele era em Deus, antes de ele existir, isto é, aquele homem que realiza aquele Eu que Deus concebeu para ele no intuito da criação, antes mesmo desse homem existir no tempo. Vir a ser o que somos em Deus, desde a eternidade, é nossa suprema bem-aventurança. Esse Eu originário é tudo, menos egoísta. Sua identidade não exclui a diferença, antes, a inclui, dela se nutre e a ela se volta, no amor.

Assim, ama verdadeiramente a si mesmo aquele que se abre ao outro: o outro de si (o si-mesmo no sentido do Eu espiritual), o outro do outro (o Tu), o outro do Totalmente Outro (Deus). O amor a si precisa, assim, ser subsumido no amor a Deus e no amor ao próximo. De fato, o melhor modo de amar a si mesmo e constituir a própria identidade é abrir-se à diferença do outro. Com efeito, a diferença do outro não anula, antes alimenta e enriquece, a identidade de cada homem. Por isso, ama realmente a si mesmo aquele que coopera com o amor de Deus e com o amor do próximo: aquele que ama o próximo como a um outro si-mesmo; aquele que ama a Cristo, que sendo Deus, o Totalmente Outro, que se fez, por amor a nós, nosso próximo, o Não-outro. Grande amor, porém, é aquele em que o homem já não ama a Deus por causa de si mesmo, mas que ama a Deus por causa de Deus, e que, por fim, ama a si mesmo por causa, isto é, causado pelo amor de Deus (Cf. São Bernardo: De diligendo Deo).

 

  1. Amar de todo coração de toda a alma e de todos o entendimento

Ao instituir e organizar seu Povo, Jahvé não apenas lhe confia o mandamento do amor, mas, também, o modo como deve ser observado: de todo o coração, de toda a alma e de todo a mente. São Boaventura, para explicar este modo de amar usa o exemplo do amor da esposa e o explica citando São João Crisóstimo: “Amar o Senhor de todo o coração significa não teres o coração inclinado ao amor de coisa alguma mais do que de Deus, não te deleitares na figura deste mundo nem nas honras nem nos pais, mais do que em Deus”.

Amar assim, significa, a exemplo do nosso coração corpóreo, inteiramente vazio de si mesmo, servir e acolher sem rachas, sem divisões, a todo o instante, sem parar, todas as criaturas e o Senhor Deus como nosso “único bem, o bem inteiro, o bem universal” (São Francisco).

“De toda a alma” segundo santo Agostinho, “consiste em amá-lo de toda a vontade, excluindo qualquer coisa em contrário; é fazer não o que queres nem o que aconselha o mundo nem o que sugere a carne, mas o que sabes querer o Senhor, teu Deus. Seguramente amas a Deus de toda alma, quando por amor de Jesus Cristo expõe de bom grado à morte, se necessário, a tua vida”. Quem ama assim jamais desanimará, jamais se frustrará ou se fragilizará. Pelo contrário, os desafios, a exemplo do senhor na cruz, tornam-se seu alento, coragem, vigor e as dificuldades suas grandes mestras.

Finalmente, ainda, “de todo entendimento” ou “de toda a mente”, segundo Santo Agostinho, significa “amar de toda a memória, sem esquecimento” (Cf. “De Perfectione Vitae, São Boaventura). Quem ama assim, se aproximará da raiz e do princípio de cada criatura ou acontecimentos uma vez que todas e todos nascemos e vivemos a partir do mesmo princípio (Cf. 2ª leitura do Ofício das Leituras da festa da Bem-aventurada Angelina de Montegiove, 13 de julho).

 

Mas, por que o amor é tão importante a ponto de Jesus proclamá-lo como o primeiro de todos os mandamentos? A razão é muito simples: porque Deus, o princípio, a origem, a fonte de tudo e de todos é Amor. Por isso, também suas criaturas carregam como sua marca mais profunda a de serem “amores” do Amor e, por conseguinte, como tais, com a necessidade interior de amar ou servir como Ele ama e serve. Por isso, não pode ninguém, jamais, viver numa atitude de indiferença, alheio às demais criaturas tanto humanas como cósmicas.

Por isso, a Igreja, principalmente desde Leão XIII com a Rerum Novaram, passando pelo Vaticano II, até hoje, com o Papa Francisco, vem insistindo na recuperação da dimensão social, comunitária do mandamento do amor. Quando, porém, a Igreja faz isto não está apenas dizendo um “não” a um cristianismo autorreferencial[U1] , meramente privado e unicamente voltado para si, mas também que precisamos retomar o coração do Evangelho e de toda a tradição religiosa do Antigo e do Novo Testamento: que aprendamos a reconhecer e acolher com alegria e gratidão o Reino de Deus que está no meio de nós e que nos disponhamos a colaborar com sua justiça, sua paz e fraternidade em favor de todas as criaturas, nossas irmãs, principalmente os humanos e dentre esses os próximos mais próximos, os injustiçados, os migrantes e refugiados, os mais frágeis e empobrecidos como os órfãos, as viúvas, as crianças, os doentes e idosos abandonados, muitas vezes, à própria sorte.

Daí essa magnífica conclusão do Papa Francisco: Por conseguinte, ninguém pode exigir-nos que releguemos a religião para a intimidade secreta das pessoas, sem qualquer influência na vida social e nacional, sem nos preocupar com a saúde das instituições da sociedade civil, sem nos pronunciar sobre os acontecimentos que interessam aos cidadãos (EG 183).

E, para consolidar sua exortação o Papa faz questão de evocar dois significativos exemplos: Quem ousaria encerrar num templo e silenciar a mensagem de São Francisco de Assis e da Beata Teresa de Calcutá? Eles não o poderiam aceitar. Uma fé autêntica – que nunca é cômoda nem individualista – comporta sempre um profundo desejo de mudar o mundo, transmitir valores, deixar a terra um pouco melhor depois da nossa passagem por ela (idem).

Finalmente, leiamos essa admirável conclusão: Amamos este magnífico planeta, onde Deus nos colocou, e amamos a humanidade que o habita, com todos os seus dramas e cansaços, com os seus anseios e esperanças, com os seus valores e fragilidades. A terra é a nossa casa comum, e todos somos irmãos. Embora «a justa ordem da sociedade e do Estado seja dever central da política», a Igreja «não pode nem deve ficar à margem na luta pela justiça». Todos os cristãos, incluindo os pastores, são chamados e preocupar-se com a construção de um mundo melhor” (EG 183).

Fraternalmente,

Marcos Aurélio Fernandes e Frei Dorvalino Fassini, ofm

 

 

 

 

 

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